O STF vai
julgar sobre a contratação de professores confessionais e sobre o ensino
religioso confessional nas escolas públicas e não sobre a oferta de ensino
religioso. Trata-se de ação movida pelo ministério público que defende a
laicidade do ensino religioso para evitar que seja conduzido por uma fé
específica nas escolas públicas.
O ensino
religioso nas escolas públicas deve ser objeto de votação do Supremo Tribunal
Federal nesta quarta 30, em ação que conta com a relatoria do ministro Roberto
Barroso. Estará em pauta a legalidade da oferta do ensino religioso pelas
escolas da rede pública, questionada pela publicação da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 4439, proposta pela Procuradoria-Geral da República
em 2010.
Previsto na
Constituição Federal de 1988, o tema do ensino religioso ganhou novos contornos
com o decreto nº 7107, de fevereiro de 2010, firmado entre o governo brasileiro
e a Santa Sé. O decreto alterou o previsto no parágrafo 1 do artigo 2010 da
Constituição, que previa o ensino religioso, de matrícula facultativa, como
disciplina das escolas públicas de ensino fundamental, com a seguinte redação:
1º. O ensino
religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula
facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem
qualquer forma de discriminação.
A dimensão
da confessionalidade atribuída ao ensino religioso foi “o gatilho disparador da
ADI”, como coloca a autora e então procuradora-geral, Déborah Duprat. O texto
defende que “a única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado
Brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas é através da adoção do
modelo não confessional, em que o conteúdo programático da disciplina consiste
na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais
das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo
e o agnosticismo, sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores”.
Também está
colocada na peça a necessidade da disciplina ser ministrada por professores da
carreira, descartando a presença de docentes alinhados a determinadas
confissões religiosas, como explica Déborah.
“Queremos
assegurar uma não doutrinação. O ensino religioso teria que abordar então todas
as matrizes religiosas, especialmente as de cunho minoritário, como as de
matriz africana e também as não religiões”.
Outros
desdobramentos
O movimento
pela educação laica também vem sendo acompanhado de perto pelo grupo Educação e
Laicidade, que reúne diversas organizações da sociedade civil. O coletivo
chegou a lançar um manifesto em defesa da aplicação integral de limites
constitucionais ao ensino religioso nas escolas públicas brasileiras.
Os
signatários da proposta reconhecem a importância da ADI, mas a ampliam com
recomendações ao STF a serem levadas em conta no momento da votação da peça.
A
coordenadora da Ação Educativa e integrante do coletivo, Denise Carreira,
comenta as três principais indicações do grupo. Uma delas, como explica, coloca
limites negativos à presença da religião na escola pública, ou seja, delimita o
que não pode ser permitido.
“Por
exemplo, a matrícula obrigatória no ensino religioso, várias redes trabalham
com esse mecanismo, ferindo o princípio da facultatividade; também questionamos
a questão da transversalidade adotada por algumas escolas, que faz com que o
conteúdo religioso seja diluído em todas as disciplinas; e a presença deste
ensino na grade curricular, o que acaba por pressionar os estudantes a
cursá-lo”.
O coletivo
ainda propõe que o STF faça uma interpretação contemporânea da inserção do
ensino religioso na Constituição, que teria acontecido na época “por lobby
religioso”. “O termo foi para a Constituição como forma de garantir a preservação
de valores civilizatórios. Hoje, no entanto, o Brasil é capaz de apresentar
outras soluções laicas a esta intenção, no bojo das Diretrizes Nacionais para a
Educação em Direitos Humanos, aprovadas em 2012, e de outras legislações que se
ancoram no mesmo arcabouço legal”, avalia Denise.
O grupo
defende que o ensino religioso não é uma resposta adequada ao exercício da
intolerância e do ódio e que, muitas vezes, acaba por acirrar questões
conflituosas.
Outra
incidência se dá em relação ao não financiamento público do ensino religioso,
vetando qualquer possibilidade de direcionar orçamento público para
professores, materiais didáticos e recursos de vertentes religiosas.
“Sobretudo
em um momento de esvaziamento do Plano Nacional de Educação, é um absurdo jogar
dinheiro no ensino religioso. Queremos que o STF reafirme a urgência da
implementação do PNE enquanto instrumento de promoção de uma educação de
qualidade, comprometido com a justiça social, em detrimento aos interesses de
muitas igrejas”, reforça a especialista.
Uma agenda
em disputa
Para a
presidenta da Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado, é clara a
disputa entre os defensores da democracia e do respeito ao princípio da
laicidade do Estado, e grupos religiosos, confessionais e cristãos que atuam
como atores políticos na permanência do ensino religioso na Constituição e em
seus desdobramentos.
Em sua
análise, há brechas que dão margem à prática do ensino religioso descolada da
ideia de estudo das religiões do ponto de vista histórico, sociológico e
antropológico. “O próprio nome ensino religioso reforça a dimensão do ensinar a
partir de um caráter religioso”, coloca.
Ela também
considera que o acordo com a Santa Sé criou uma hierarquização acerca do modelo
confessional. “Deu margem para que qualquer ensino religioso tente inculcar nos
alunos uma única religião como verdadeira, a defesa de uma verdade e, portanto,
a exclusão de outras vertentes religiosas”.
Ao invés das
escolas buscarem, em sua maioria, garantir a formação de estudantes críticos e
autônomos, capazes de fazerem suas escolhas e tomarem suas decisões inclusive
no campo da religiosidade, muitas praticam proselitismo, com prejuízos à pluralidade
do campo.
Dados dos
questionários da Prova Brasil 2015 enviados a diretores de escolas municipais,
estaduais e federais evidenciam esta questão nas dinâmicas escolares. 1740
diretores afirmam que o ensino religioso na escola segue uma religião específica;
quando questionados se a escola possuía uma atividade alternativa aos
estudantes que não quisessem cursar o ensino religioso, 28.295 diretores
assinalaram que não.
Créditos:
QEdu
No Estado do
Rio de Janeiro o ensino confessional é garantido pela Lei nº 3459, de 14 de
setembro de 2000, assinada pelo então governador Anthony Garotinho. A
legislação ainda prevê que os professores da rede sejam credenciados pela
autoridade religiosa competente.
Denise
Carreira reforça que essas inclinações não devem se dar no âmbito público da
educação, “isso sequestra as escolas para a lógica da disputa religiosa”. A seu
ver, o ensino religioso deve ser reservado às famílias que professam religiões,
ao espaço das próprias denominações religiosas e às escolas confessionais.
O professor
da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, entende que a confusão
normativa acerca do ensino religioso é intencional e “vem servindo de porta de
entrada e justificação para as mais diferentes violações à liberdade de
pensamento, crença e não crença nas escolas públicas”.
Por esta
razão, entende que o momento é oportuno para cobrar autonomia e discernimento
dos ministros do STF no sentido de assegurar que “o ensino religioso não sirva
à pregação manifesta ou dissimulada de valores religiosos e de uma pretensa
dimensão religiosa do sujeito; e que, no âmbito das escolas públicas, trate
apenas dos conteúdos relacionados às liberdades religiosas e ao pluralismo da
sociedade brasileira”.
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